domingo, 9 de fevereiro de 2014

Vozes d'África - Castro Alves


Iniciaremos o nosso Blog com a resenha deste poema sensacional de Castro Alves. Apesar de longo, vale a pena ler até o final. Então, vamos lá! Imagem, Encanto e Letra...

Vozes d'África
Castro Alves
11 de junho de 1868

Deus! ó Deus! onde estás que não respondes?  
Em que mundo, em qu'estrela tu t'escondes 
Embuçado nos céus?
Há dois mil anos te mandei meu grito, 
Que embalde desde então corre o infinito...
Onde estás, Senhor Deus?...

Qual Prometeu tu me amarraste um dia 
Do deserto na rubra penedia
— Infinito: galé! ...
Por abutre — me deste o sol candente, 
E a terra de Suez — foi a corrente 
Que me ligaste ao pé...

O cavalo estafado do Beduíno 
Sob a vergasta tomba ressupino 
E morre no areal.
Minha garupa sangra, a dor poreja, 
Quando o chicote do simoun dardeja 
O teu braço eternal.

Minhas irmãs são belas, são ditosas... 
Dorme a Ásia nas sombras voluptuosas 
Dos haréns do Sultão.
Ou no dorso dos brancos elefantes 
Embala-se coberta de brilhantes 
Nas plagas do Hindustão.

Por tenda tem os cimos do Himalaia... 
Ganges amoroso beija a praia 
Coberta de corais ...
A brisa de Misora o céu inflama;
E ela dorme nos templos do Deus Brama,
Pagodes colossais...


A Europa é sempre Europa, a gloriosa! ...
A mulher deslumbrante e caprichosa,
Rainha e cortesã.
Artista — corta o mármor de Carrara
Poetisa — tange os hinos de Ferrara,
No glorioso afã! ...

Sempre a láurea lhe cabe no litígio...
Ora uma c'roa, ora o barrete frígio 
Enflora-lhe a cerviz.
Universo após ela — doudo amante 
Segue cativo o passo delirante 
Da grande meretriz.
....................................

Mas eu, Senhor!... Eu triste abandonada 
Em meio das areias esgarrada,
Perdida marcho em vão!
Se choro... bebe o pranto a areia ardente; 
talvez... p'ra que meu pranto, ó Deus clemente!
Não descubras no chão...

E nem tenho uma sombra de floresta... 
Para cobrir-me nem um templo resta 
No solo abrasador...
Quando subo às Pirâmides do Egito 
Embalde aos quatro céus chorando grito:
"Abriga-me, Senhor!..."

Como o profeta em cinza a fronte envolve, 
Velo a cabeça no areal que volve 
O siroco feroz...
Quando eu passo no Saara amortalhada... 
Ai! dizem: "Lá vai África embuçada 
No seu branco albornoz. . . "

Nem vêem que o deserto é meu sudário
Que o silêncio campeia solitário 
Por sobre o peito meu.
Lá no solo onde o cardo apenas medra 
Boceja a Esfinge colossal de pedra 

Fitando o morno céu.
De Tebas nas colunas derrocadas 
As cegonhas espiam debruçadas 
O horizonte sem fim ... 
Onde branqueia a caravana errante, 
E o camelo monótono, arquejante 
Que desce de Efraim

......................................

Não basta inda de dor, ó Deus terrível?! 
É, pois, teu peito eterno, inexaurível
De vingança e rancor?... 
E que é que fiz, Senhor? que torvo crime 
Eu cometi jamais que assim me oprime 
Teu gládio vingador?!

........................................

Foi depois do dilúvio... um viadante
Negro, sombrio, pálido, arquejante,
Descia do Arará...
E eu disse ao peregrino fulminado:
"Cão! ... serás meu esposo bem-amado...
— Serei tua Eloá. . . "

Desde este dia o vento da desgraça 
Por meus cabelos ululando passa 
O anátema cruel.
As tribos erram do areal nas vagas
E o Nômada faminto corta as plagas 
No rápido corcel.

Vi a ciência desertar do Egito... 
Vi meu povo seguir — Judeu maldito —
Trilho de perdição.
Depois vi minha prole desgraçada 
Pelas garras d'Europa — arrebatada —
Amestrado falcão! ...

Cristo! embalde morreste sobre um monte 
Teu sangue não lavou de minha fronte 
A mancha original.
Ainda hoje são, por fado adverso
Meus filhos — alimária do universo,
Eu — pasto universal...

Hoje em meu sangue a América se nutre 
Condor que transformara-se em abutre,
Ave da escravidão,
Ela juntou-se às mais... irmã traidora 
Qual de José os vis irmãos outrora 
Venderam seu irmão.

Basta, Senhor!  De teu potente braço 
Role através dos astros e do espaço 
Perdão p'ra os crimes meus!  
Há dois mil anos eu soluço um grito...
escuta o brado meu lá no infinito,
Meu Deus!  Senhor, meu Deus!!...

---- * fim *----

Agora, vamos entender o que estava passando pela cabeça de Castro Alves ao criar essa "obra de arte" da literatura brasileira:

Vocabulário

embuçado  =  encapuzado, escondido
embalde  = em vão
Prometeu  = deus grego que, interessado no desenvolvimento da humanidade, roubou o fogo da carruagem de Febo, o Sol, para dar aos homens.  Irritado, Zeus fez com que Prometeu fosse preso por uma corrente às pedras do monte Cáucaso e mandou que uma água fosse diariamente devorar o fígado de Prometeu, sendo que este, a cada dia se renovava, fazendo com que sua dor nunca terminasse.  Seu sofrimento durou até que Hércules o libertou da rocha e matou a águia.
rubra penedia = rochedo vermelho
terra de Suez = faixa de terra que ligava a África à Europa.  Em 1869 foi oficialmente aberto um canal que permitia a ligação do Mar Vermelho com o Mar Mediterrâneo
beduíno = árabe do deserto
vergasta = chicote
ressupino  = de costas
Simum = vento quente do Saara que provoca grandes tempestades de areia.
dardeja = joga dardos, desfere
plagas = terras
Hindustão = terras ao norte da Índia
cimos = cumes
Himalaia = cordilheira asiática onde se encontra o monte Evereste.  Essa cordilheira abrange 5 países.
Ganges = rio que nasce no Himalaia e banha diversas capitais da Índia.
pagodes = templos asiáticos
cortesã = prostituta
mármor= mármore
Carrara = cidade na Itália conhecida por seu excelente mármore
Hinos de Ferrara = alusão aos poemas de Torquato Tasso que serviu à corte de Ferrara, cidade na Itália
láurea = coroa de louros que era dada pelos romanos aos vencedores de uma competição
barrete frígio = chapéu vermelho usado na França no tempo da 1ª república, parecidos com o chapéu que os frígios usavam.
enflora = ornamenta com flores
cerviz = nuca
velo  = cubro (do verbo “velar”, cobrir)
siroco = vento quente sobre o Mediterrâneo
amortalhada = coberta com uma mortalha (vestimenta ou pano no qual se envolve o cadáver antes de ser sepultado)
Albornoz = grande manto de lã com capuz usado pelos árabes
sudário = véu com que, na Antiguidade, se cobria a cabeça dos mortos
cardo = planta desértica e  espinhosa
medra = cresce, se desenvolve
Esfinge = monstro mitológico que tinha corpo de leão e cabeça humana. No Egito Antigo, uma esfinge esculpida em pedra guardava a entrada de templos e túmulos.
Tebas = cidade do Egito onde se encontram hoje ruínas famosas
arquejante = que respira com dificuldade, puxa o ar
Efraim =cidade de Israel
inexaurível = que não acaba, não termina
torvo = pavoroso
gládio = espada de dois gumes
viandante = viajante, peregrino
Arará = monte onde supostamente pousou a arca de Noé após o dilúvio
Cão =  também chamado Cã, filho de Noé do qual descende a raça negra.
ululando = uivando (do verbo “ulular”)
anátema = maldição
vagas = ondas (neste caso, ondas de areia, ou dunas do deserto)
fado = destino
adverso = hostil, inimigo
alimária = animais de carga, bestas
José = personagem bíblico, filho de Jacó, cujos irmãos enciumados venderam-no a mercadores que traficavam escravos

Depois de analisarmos o vocabulário passamos a entender a essência do poema:  a África personalizada como uma mulher, lamenta sua dor de ver seus filhos levados cativos, escravizados.
O poema escolhido para esta análise é um dos mais belos exemplos de poesia social, abolicionista, que permeou a 3ª geração do Romantismo na literatura Brasileira e tem como seu poeta mais representativo Antônio Frederico de Castro Alves (1847 – 1871), patrono da cadeira número 7 da Academia Brasileira de Letras.
Um poema assim como "Vozes d´África", carregado de significado, que faz referências constantes a elementos geográficos, mitologia grega, culturas estrangeiras, etc., só pode fazer uso de um fenômeno literário conhecido como intertextualidade.
E o que vem a ser esse "palavrão"?
É simples!  A intertextualidade é a referência de um texto a outro texto, um diálogo entre textos, onde o autor faz menção a outros textos de maneira explícita (clara) ou implícita (sutil). Esse fenômeno permite embutir no texto uma extensa variedade de temas relacionados ao tema principal do poema, fazendo com que o leitor se transporte para outros textos, outras culturas e outras épocas.
Bem, a estas alturas você já identificou alguns elementos introduzidos no texto pela intertextualidade, não é?
Vejamos um exemplo logo na 2ª estrofe, que começa assim: “Qual Prometeu tu me amarraste um dia...”  Se você leu a explicação do vocabulário, sabe a história mitológica de Prometeu.  Então, agora, analisemos o significado da 2ª estrofe.
Ao se comparar com Prometeu, a África personalizada diz que se encontra na mesma situação do personagem mitológico: está amarrada em pedras rubras, quentes no deserto (condição desértica do norte de África), tem como responsável pelo seu sofrimento o abutre (sol ardente, constante no deserto, que vem diariamente) e está amarrada para evitar sua fuga (terra de Suez que liga a África à Europa).  Não podemos negar que a comparação é perfeita. Não concorda que, ao fazer menção a outro texto, no caso, da mitologia grega, a visualização da personagem África ficou muito mais vívida? Sim, porque de forma nenhuma você deve esquecer que muito do prazer derivado da literatura vem de uma boa visualização. Exercite sua imaginação.  Você consegue, tente!!!
As referências geográficas são inúmeras. Ao falar dos outros continentes (que se beneficiaram da escravidão) a África se refere a eles como suas irmãs. Nesse contexto, as referências vão desde belos lugares em outros continentes (os cumes do Himalaia, o rio Ganges, a cidade de Carrara, etc.) como também a suas culturas (os haréns do Sultão, o deus Brama, o mármore de Carrara, a glória das batalhas da Europa em conquistar outros continentes, etc.) Essas referências são usadas para valorizar as qualidades de suas “irmãs”, ao passo que ela, a África, parece ter sido esquecida por Deus.
Pelo menos 3 vezes há referências claras ao texto bíblico: o dilúvio (dessa história bíblica vem Cã, filho de Noé, do qual descende a raça negra, e a menção do monte Arará), Cristo (sua morte no monte, seu sangue resgatador) e José, traído pelos seus irmãos, assim como ela África foi pelos outros continentes que se alimentaram da escravidão.
Uma das mais tocantes metáforas usadas é a estrofe que diz:
“Mas eu, Senhor! ... Eu triste, abandonada
Em meio das areias esgarrada
Perdida marcho em vão!
Se choro... bebe o pranto a areia ardente;
Talvez... pra que meu pranto, ó Deus clemente
Não descubras no chão...”

É claro que o leitor fica comovido com a situação da África.  Afinal, nem adianta chorar porque na areia quente as lágrimas desaparecerão e ninguém vai notar sua profunda dor... Conseguiu visualizar? Vamos tentar:

 Uma mulher solitária e triste caminha pelo deserto. Tem sua cabeça coberta por um manto grosso, usado pela tribos do deserto para se proteger do sol escaldante.  Não há sombra para se abrigar, não há vento fresco, mas um vento quente, carregado de areia. Ela pensa em seus filhos escravizados por suas próprias irmãs e então chora.  As lágrimas caem no chão, porém, são rapidamente absorvidas pela areia quente, e ela questiona o porquê de sua desgraça em uma oração de súplica a Deus. Onde estaria Ele, ela pensa...
A menção do Condor na penúltima estrofe é extremamente significativa:  o condor era a ave símbolo da liberdade, ave que voa alto nos picos dos Andes. E, por isso, a 3ª geração de poesia romântica do Brasil é também chamada  de “Condoreirismo”, pela defesa da liberdade, mostrando claramente a tendência libertária que imbuiu poetas e, principalmente, Castro Alves.
Castro Alves recebeu o epíteto de “Poeta dos escravos” pois em muitos outros de seus poemas defendeu apaixonadamente a abolição da escravatura. Foi corajoso em recitar, certa vez, um de seus poemas em público, tendo dentre a assistência grandes fazendeiros que, com certeza, não gostaram nada do que ouviram.  Não havia nele medo, só a necessidade da defesa da liberdade. Seus versos da fase condoreira são de linguagem erudita e rima perfeita, o que dificulta o entendimento, mas de forma alguma devem ser colocados de lado pelo leitor moderno. O poema “Vozes d´África” indica não só a  grande erudição de Castro Alves, pois foi escrito por um jovem de 20 anos, mas sua impressionante empatia ao sofrimento do ser humano...

Agora, leia de novo o poema. Analise cuidadosamente sua riqueza de significados e descubra, por você mesmo, tantas outras referências contidas nesse lindo texto.


2 comentários:

Unknown disse...

Fantástico! Este poema é o meu preferido de Castro Alves e um marco na minha adolescência. Parabéns pela excelente análise feita de um dos poemas mais importantes deste gigante da literatura e da história brasileira! Continue compartilhando conosco estas maravilhas. Alguns poemas que eu gostaria de ver dois "Jucas" sendo aqui analisados: "Juca Mulato" de Menotti del Picchia (especialmente a parte "A Voz das Coisas"), e "Juca Pirama" de Gonçalves Dias. Mais uma vez parabéns!

ana carolina disse...

Muito bom esse poema , ainda mais quando a gente entende !!!!!!